A mente e o vazio existencial de um bon-vivant criminoso

O narrador e protagonista de O Livro das Evidências, do premiado escritor irlandês John Banville, tem tudo para entrar no bestiário dos mais infames personagens da Literatura. Não que Frederick Montgomery seja um vilão estereotipado, ou um psicopata, muito pelo contrário. Mas, quando perguntado por que cometeu um crime repulsivo, ele responde simplesmente: porque eu pude. É sobre a mente desse homem que a obra vai se debruçar.

Divulgado como literatura policial ou criminal, o livro está mais para um romance psicológico, e brilhantemente escrito, diga-se. Não espere dele nada da estrutura tradicional das histórias de detetive ou do golpista que tenta cometer o crime perfeito. Aliás, a história já começa com Frederick preso, réu confesso, contando de dentro de um presídio, enquanto espera seu julgamento, os fatos que o levaram a se transformar em um criminoso.

De família com origem nobre, e um tanto decadente, ele havia recebido parte de uma herança depois da morte do pai e decidiu levar uma vida de bon-vivant. Fez isso durante dez anos, viajando e morando em ilhas paradisíacas do Mediterrêneo com sua esposa e, depois, também com o filho pequeno. Só que o dinheiro acaba e Frederick tenta aplicar um pequeno golpe, mas tudo dá errado e ele acaba devendo uma boa grana para pessoas um tanto perigosas.

Ele resolve, então, voltar para casa, no interior da Irlanda, para tentar conseguir com a mãe o dinheiro necessário para quitar sua dívida. Com um detalhe: o credor teve o cuidado de fazer com que sua mulher e filho ficassem na ilha, esperando que ele voltasse. Só que conseguir esse dinheiro não vai ser algo simples e o personagem acaba descobrindo que está disposto a lançar mão de meios não muito honestos para isso.

Além de tecer uma escrita elegante e direta, John Banville consegue um eficiente equilíbrio para seu protagonista, mesclando autocomiseração e desprezo por si mesmo em doses equânimes. Frederick praticamente não trabalhou na vida, não obteve conquistas ou realizações e se viu falido antes dos 40 anos. O que não o impede de nutrir um sentimento de superioridade devido à sua origem aristocrática.

Cínico e distante, ele é quase incapaz de sentir empatia, seja por quem for, o que parece fruto da falta de densidade que percebe dentro de si mesmo. Em vários momentos, o personagem expressa o quanto se sente alheio a um sentido que parece animar a vida de todos ao seu redor, mas que ele não compreende. Acredita na vida enquanto uma sucessão de fatos sobre os quais não tem controle. Nesse sentido, se aproxima de certos personagens da obra de Camus e do conceito de absurdo.

Não se deve imaginar, no entanto, que o livro é sempre sombrio. Frederick tem um certo charme frívolo de quem não se leva a sério, e que é acrescido pela forma desabrida com que expõe a si mesmo, às vezes com boas doses de ridículo e de ironia.

É importante reforçar que a obra está longe do thriller policial, com sua tensão e narrativa ágil. Ao contrário disso, o livro se dedica com certa frequência a descrições – de lugares, sensações, estados de espírito, pessoas – e reflexões, o que proporciona um ritmo mais lento. Tirando essa expectativa, no entanto, o que fica é o refinamento tanto do texto como da impressionante construção psicológica levada a cabo por Banville.

Não se deve esquecer, no entanto, que Frederick é um acusado prestes a ser julgado. E que o livro que você, leitor, está lendo é escrito por ele – pelo menos ficcionalmente, é claro. O que ele quer com isso e até que ponto seu relato é confiável talvez seja o maior mistério para se desvendar – se é que isso é possível.

Ficha técnica:
O Livro das Evidências [1989]
John Banville (Irlanda, 1945-)
Editora Biblioteca Azul, 2018, 240 páginas

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