As muitas facetas de A Hora da Estrela

Quem tem A Hora da Estrela em mãos, último livro publicado por Clarice Lispector em vida, frequentemente se surpreende com os outros 12 títulos alternativos que aparecem em sua folha de rosto. Esse fato bem pode ser visto como um indicador da multiplicidade e riqueza de temas, reflexões e abordagens propostas pela escritora nesta novela, considerada um dos pontos altos de sua obra.

Ao contrário do que a autora frequentemente fazia, em A Hora da Estrela não temos uma narradora”, mas sim um certo Rodrigo S. M. Relato. É ele quem vai contar a trajetória da protagonista Macabéa, que nasceu no sertão alagoano, foi órfã de pai e mãe nos primeiros anos de vida e criada por uma tia beata – e nem um pouco amorosa, diga-se de passagem – em Maceió. Ela consegue, mais tarde, enviar Macabéa ao Rio de Janeiro, onde vai trabalhar como datilógrafa.

Lá, a protagonista, que tem 19 anos e estudou até a terceira série primária, divide um quarto de pensão com outras quatro mulheres e ganha um salário que é suficiente para mantê-la trabalhando, mas que a deixa numa magreza ancestral, devido à contínua fome por que passa. Nesse aspecto, a personagem é uma representação do migrante do sertão dos estados nordestinos, que fugia da pobreza extrema para cair numa cidade “que em tudo é sua inimiga”. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

Mas Macabéa está longe de ser apenas isso: ela é muito mais e muito menos. Desprovida de atrativos físicos, tem “cara de tola” e “os ombros curvos como os de uma cerzideira”. É extremamente calada e não se relaciona com praticamente ninguém à sua volta, vivendo uma rotina sem sentido e quase sem variações. De certa forma, tranca-se dentro de si como se para proteger-se, mas não de propósito, mas sim porque não sabe fazer diferente. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

“Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar”, conta o narrador, em certo trecho da novela.

A verdade é que Macabéa vive num estado de irreflexão: não se questiona, não se revolta e se pensasse em se opor a alguém, não saberia a quem. Às vezes fica triste e acha isso bom; é que era tão sozinha que “sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro”.
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É dessa personagem que Clarice, por meio de seu narrador, vai se valer para realizar uma série de cogitações: sociais, filosóficas e estéticas. Sobre o primeiro aspecto, já comentado acima, um dos 12 títulos dados por Clarice – “O direito ao grito” – já revela uma defesa contida na obra. Mas o tema vai além, dentre outros motivos pelo autoquestionamento de Rodrigo S. M. Relato: que põe em cena o papel do escritor no contexto social.

Tais reflexões se constituem por meio do fato do narrador fazer-se personagem: ele também é o escritor que compõe a história de Macabéa e com isso fala de seu processo criativo, revela opiniões, hesitações, sentimentos em relação aos personagens, etc. E grande parte de A Hora da Estrela é ocupada pela sua voz, em forma de monólogo, de modo que o enredo da protagonista, de início, faz-se quebradiço e só aos poucos vai se formando, de maneiras mais ou menos lineares.

Isso tem a ver com a discussão estética da obra. “Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo”, afirma o narrador, numa prenunciação da defesa que fará de uma linguagem que comporte e seja feita também por meio dos sentimentos, das emoções, mesmo as inexplicáveis. Além disso, propõe um estilo que se iguale, solidário, à sua protagonista, e que ao mesmo tempo recuse os adornos da forma romanesca clássica. Para essa identificação, também movimenta-se para fora do seu monólogo em busca dos fatos da vida de Macabéa.

Por fim, muito da reflexão filosófica de Clarice está relacionada ao fato de que, apesar da carência total de Macabéa, é possível identificar-se com ela, dentre outros motivos, por causa de uma carência nata, oco primordial que carregamos todos. Para realizar isso, no entanto, o desafio da consciência de si mesmo parece ser a condição que se impõe: com a autonomia e os enormes desafios resultantes.

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