O regionalismo universal de Graciliano Ramos

O trecho inicial de Vidas Secas, que narra uma família vagando pela vazante de um rio morto, ladeada pela vegetação espinhosa, sob o sol quente e carregando seus poucos pertences, é dos mais paradigmáticas da literatura brasileira. É bem verdade que a imagem do retirante fugindo da seca já virou lugar-comum, mas a obra de Graciliano Ramos vai muito além dessa representação cristalizada e empobrecida do sertanejo e sua condição social.

Nessa mesma passagem do romance já surgem alguns dos elementos que demonstram essa transcendência. É que a criança mais velha da família se cansa e senta no meio do nada. Fabiano, o pai, briga para que o filho se levante – “anda, condenado do diabo” – e até lhe dá uns safanões. Não obtendo resultado, se zanga e pragueja. Está exausto e faminto. Passa-lhe pela cabeça a ideia de abandonar o filho, agora já deitado no chão.

Quando se baixa e pega o garoto pelo pulso, percebe que ele está “frio como um defunto”. É quando se apieda e o põe sobre os ombros. O grupo, então, segue caminho e a cachorra da família, Baleia, resolve ir na frente de todos. De vez em quando, ela pára e olha para trás, esperando pelos outros, que se demoram.

Já estão aí os indícios de que Fabiano não será apenas um tipo social, mas um personagem complexo. Graciliano Ramos faz um mergulho profundo no comportamento e pensamentos do vaqueiro, que tenta sobreviver à pobreza e que em certos momentos compara-se e é retratado quase como um bicho, devido à situação de desumanização por que passa. Em contraste, a cachorra Baleia assemelha-se a uma pessoa: trechos do romance são narrados segundo seu ponto de vista e até seus pensamentos são descritos.

Não é à toa que Vidas Secas faz parte do cânone da literatura brasileira. Graciliano Ramos compõe, junto a escritores como José Américo de Almeida e José Lins do Rêgo, a segunda geração modernista, também sendo representantes da chamada literatura regionalista. Mas Vidas Secas, diga-se, também está além dessa classificação.

O enredo do romance é a busca pela sobrevivência, em meio à seca, da família de Fabiano, composta por sua mulher, Sinha Vitória, e os filhos, identificados como “o menino mais velho” e “o menino mais novo”, além de Baleia. Eles migram em busca de condições melhores de vida e acabam se fixando em uma propriedade, onde Fabiano é contratado como vaqueiro e responsável pela criação dos animais e a manutenção da parca estrutura da fazenda.

Mas as dificuldades deles apenas se amenizam. Apesar de não correrem o risco de morrer de fome, continuam vivendo na pobreza. O trabalho de Fabiano, em vez de ajudá-los a prosperar, acaba resultando em dívidas com seu patrão. A figura do fazendeiro, aliás, e a do “soldado amarelo”, outro personagem do romance, funcionam como representações de estruturas sociais. E, mesmo nessa situação, a seca continua sendo uma ameaça.

Graciliano Ramos narra o romance em terceira pessoa, mas usa o discurso indireto livre intensamente. Seus personagens pouco falam, mas ele lhes dá voz ao construir capítulos que são narrados do ponto de vista de cada membro da família – e um deles também é dedicado a Baleia. Assim, o escritor acompanha suas percepções, ideias e sonhos, num aprofundamento psicológico magistralmente construído, principalmente no caso de Fabiano, personagem central do livro.

A descrição do mundo externo aos personagens, por sua vez, se conecta perfeitamente a essa vida interna. Trata-se da vegetação da caatinga, dos instrumentos do vaqueiro, do casebre pobre e seus poucos recursos, além da fauna de bois, bodes, urubus, arribaçãs e até preás: tudo têm uma função construída no romance. E a linguagem também reflete esse universo.

Vidas Secas permanece atual como um clássico que é, mesmo depois de mais de 80 anos. Sua história ultrapassa o fenômeno do retirante nordestino e mesmo o da literatura regionalista, porque consegue, com excelência artística, tematizar dois assuntos. Primeiro, a brutalização do indivíduo pela pobreza. Segundo, a humanização desse mesmo indivíduo, que se dá quando ele usa o sonho como ponto de partida da busca por libertar-se dessa condição. Assim, o livro se torna universal.

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