Protagonista de Tokarczuk simboliza moral desprezada por mundo em decadência política e ambiental

A protagonista de Sobre os Ossos dos Mortos, romance da polonesa Olga Tokarczuk, é uma estranha outsider. Trata-se de uma aposentada de cabelos brancos, vivendo sozinha em um lugar afastado e frio. Ela já não viaja, não está à procura de uma vivência transcendental e não faz parte de nenhuma organização ou movimento político. Na TV, assiste apenas ao canal do tempo, e seu principal hobby é fazer mapas astrais.
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Morando em um planalto que reúne cerca de dez casas, próximas a um pequeno povoado na fronteira entre a Polônia e a República Tcheca, a senhora Dusheiko, no entanto, não tem uma vida tranquila. Ela revolta-se contra a caça de animais – existe uma associação de caçadores na pequena cidade – e contra o corte de madeira na floresta que fica nas adjacências de sua casa. De vez em quando, presta queixa formal às autoridades, quando se tratam de casos ilegais de queima de vegetação ou do abate de espécimes silvestres. Mas nunca é levada a sério.
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O ponto de partida do romance é a morte de um de seus vizinhos, a quem ela apelidava de Pé Grande. Ele se engasgou e sufocou com o osso de uma corça, que havia acabado de caçar e cozinhar. Quem descobriu seu cadáver foi outro morador, chamado por ela de Estranho, a quem ajudou a cuidar do corpo enquanto tentavam chamar a polícia numa noite de nevasca.
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Esta vai ser a primeira de uma série de mortes que vão acontecer nas redondezas e o leitor vai tomando conhecimento delas por meio do ponto de vista da senhora Dusheiko. Assim, também vai conhecer os personagens centrais da trama de crimes e as amizades que ela cultiva.
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Mas não se trata de uma história de detetive, muito menos a investigação de tais crimes ocupa parte extensa do romance. O livro é sobre a senhora Dusheiko e a respeito de como o seu olhar “de fora”, ao vivenciar os pequenos fatos do cotidiano, tem o poder de proporcionar uma severa crítica ao tipo de razão e de sociedade predominantes neste início de século.

Dusheiko espanta-se com a falta de criatividade e duvida da competência das pessoas para promoverem transformações no mundo. “Cresci numa bela época, que infelizmente já passou. Havia nela uma enorme disposição para mudanças e a capacidade de criar ideias revolucionárias. Hoje em dia ninguém mais tem coragem de inventar algo novo (…) A realidade envelheceu e ficou senil”, queixa-se.
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Ela também não poupa o tipo de discurso científico e de lógica social que vê os homens e a natureza como meros instrumentos. “Mas por que, então, deveríamos ser úteis? E para quem? Quem é que dividiu o mundo em útil e inútil, e quem lhe deu o direito de fazê-lo? Desse modo, o cardo não teria o direito de viver (…), nem sequer as abelhas ou zangões, as ervas daninhas ou as rosas”.
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E a autora nos conduz com sua linguagem narrativa como quem nos leva por uma incursão ao campo: às vezes há a beleza e poesia da paisagem aberta; em outros trechos, o divertimento comparável ao de se ver filhotes brincando; em outros, ainda, o fascínio e o mistério de se entrar na floresta densa e cheia de vida. A senhora Dusheiko vê e aprecia tudo isso, mas também percebe, cheia de tristeza, a decadência em que nos encontramos. Em certas ocasiões, consegue fazer isso com o humor dos excêntricos e iconoclastas. Em outras, cede a uma profunda melancolia.
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É significativo que sua antiga atividade tenha sido a de engenheira especialista em projetos de pontes. Ela teve de se aposentar precocemente, devido a uma doença. Mesmo assim, permanece como uma espécie de consciência desprezada de um mundo em desencanto, que prefere muros em vez de pontes.
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“Para as pessoas da minha idade, os lugares que realmente amamos e aos quais um dia pertencemos já não estão mais lá”, diz a senhora Dusheiko. O crepúsculo da protagonista parece mimetizar o de uma civilização à beira do abismo climático e acossada pelo autoritarismo e pela desigualdade. Se a política parece não produzir alternativas, talvez a literatura possa. A criação de mundos possíveis sempre foi uma capacidade da ficção. Que bem-vinda foi a a escolha de Olga Tokarczuc para o Nobel.

Ficha técnica
Sobre os ossos dos mortos [2009]
Olga Tokaczuk (Polônia, 1962 – )
Editora Todavia, 2019, 256 páginas

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