Romance tematiza o silenciamento social versus a força da sexualidade

Quando Constantino era um estudante de apenas oito anos, um colega de sala resolveu infernizar sua vida. Passou a imitar seus gestos, ridicularizá-lo e um dia, na saída da escola, na frente de todo mundo, o chamou de bicha e o agrediu com um soco na barriga. A perseguição surgiu em um momento em que nem ele mesmo tinha consciência de sua sexualidade. Mesmo assim, iria lhe ecoar pela vida afora.
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Constantino é o protagonista de Cloro, romance de Alexandre Vidal Porto, lançado no ano passado e um dos cinco finalistas em sua categoria no Prêmio Jabuti deste ano. Ele também é o narrador da história e faz isso de um lugar incomum: a pós-morte. Advogado de um escritório respeitado e bem-sucedido, casado com Débora e pai duas vezes, morreu aos 51 anos. E é nessa condição, a partir de uma espécie de limbo, que ele resolve contar sua vida, com distanciamento, para se “analisar como se fosse outro” e fazer sua defesa, “no caso de um possível Juízo Final”.
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O fato é que a humilhação imposta por Marcos Bauer – Constantino nunca esqueceu seu nome – provocou duas mudanças. Primeiro, ele passou a identificar em si mesmo os sinais do que o colega lhe impunha como um erro, uma vergonha. Segundo, resolveu que não queria para si aquela identidade. Daí em diante, passou a fazer tudo para evitar ofensivas de outros Marcos Bauer.
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Foi assim que passou a prestar atenção ao seu jeito de ser e, assim que pôde, arrumou uma namorada. Inteligente, esforçou-se para se destacar na escola e dedicou-se aos esportes. E deu certo na época. Ele afastou de si o que considerava um espectro e chegou a ser eleito líder de turma por duas ocasiões. Na época do pré-vestibular, conheceu Débora.
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O namoro foi duradouro e, seis meses após se formar na faculdade, casaram-se. “Meu kit homem estava quase completo”, comenta o narrador, com uma ironia que perpassa vários momentos do romance. Em seguida, avalia: “É curioso que ao casar eu tenha sentido a mesma tranquilidade que senti ao morrer. Nas duas situações, parece que passei a fazer parte de algo maior do que eu”.

Apesar da comparação, Constantino e Débora levam uma vida de casal confortável e sem maiores conflitos. Logo, têm dois filhos: André e Léa. A vida sexual dos dois, no entanto, nunca foi algo central no relacionamento e foi rareando cada vez mais. Contribuía para isso as muitas viagens profissionais que ele fazia e a ausência quase deliberada do ambiente com a esposa e os filhos.
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Mas um acontecimento familiar trágico vai desestruturar o que parecia seguro para ambos. Isolados em suas dores, cada um vai seguir um caminho. A brecha aberta pela situação faz com que uma série de fatos que, em princípio, seriam cotidianos, levem Constantino a redescobrir sua homossexualidade. Assim, próximo aos 50 anos, ele vai ter a sua “primeira vez” e inclusive se apaixonar. O romance narra como o protagonista vive tais descobertas.
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O fato de Constantino só contar o seu segredo após a morte é emblemático da temática central da obra: o silenciamento social que é imposto àqueles que se desviam – em termos comportamentais, políticos ou morais – do que é considerado o “padrão” por certos setores da sociedade. E, apesar de termos um momento de florescimento do movimento LGBT, a geração do protagonista continua por aí, e os contrafluxos sociais conservadores e preconceituosos também.
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A linguagem empregada pelo autor proporciona leitura fluida e dinâmica. Por outro lado, a estrutura narrativa que emprega é simples e sem maiores arroubos inventivos. Outra carência é uma certa falta de densidade no seu protagonista. Não é que Constantino seja irreal ou incoerente, mas fica a sensação de que ele esteja mais para um tipo do que para alguém de “carne e osso”.
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Por fim, é relevante dizer que, ao tratar sobre as consequências da repressão à sexualidade, o romance também aborda a sua força, apesar de todas as camadas de cultura que tentam discipliná-la. Isso fica ainda mais evidente em um trecho em que outros personagens tomam o bastão de narrador – inclusive a mulher de Constatino, Débora. Em que pesem certas lacunas, Cloro é um livro importante para os tempos em que vivemos.

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