Romance de Laub é feito literário sobre política e espaço público atual

A literatura brasileira tem atendido ao chamado do “espírito da época” e jogado luz sobre o momento de crises que vivemos. Títulos que exemplificam isso, só para citar alguns poucos, são A Morte e O Meteoro, Torto Arado, A Ocupação e O Verão Tardio. O romance Solução de Dois Estados, de Michel Laub, finalista do Prêmio Jabuti deste ano, ocupa lugar de honra nesse contexto.
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Laub obtém esse feito, dentre outros motivos, devido a uma feliz confluência entre o seu estilo e a temática que aborda. E isso acontece por dois motivos principais. Primeiro, porque a proposta estética do escritor – em especial neste romance – aparenta uma inusitada simetria com o formato dos discursos públicos nas redes sociais. Segundo, por causa do emprego de uma dinâmica narrativa entre o explícito e o recôndito, que funciona para espelhar um ambiente em que as verdades parecem – apenas parecem – estar ao alcance de um toque no smartphone.

Documentário

O enredo, a uma primeira visada, é simples: uma cineasta alemã, que viveu no Brasil por alguns anos, volta ao país para fazer um documentário cuja temática de fundo é a violência. Para isso, ela produz uma série de entrevistas com dois irmãos: Raquel, uma artista plástica, e Alexandre, um empresário, dono de uma rede de academias de ginástica no Rio de Janeiro.
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Uma das razões para a escolha deles, feita pela cineasta, foi o fato de Raquel ter sido agredida publicamente, no palco de um auditório lotado, enquanto participava, como convidada, de um evento sobre “Cidades e Convívio”. O acontecimento foi gravado e veiculado na internet, tendo obtido uma repercussão internacional.
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Começa-se o romance, no entanto, sem se saber o porquê da participação, no filme, do outro protagonista, Alexandre. Apesar de ficar claro, desde o início, que existem diferenças pessoais não resolvidas entre os irmãos. Um símbolo inicial disso é a evidente contraposição da área de atuação do empresário – as academias – com o fato de Raquel, que pesa 130 kg, usar o próprio corpo para tematizar a intolerância em sua arte.

A maior parte dos capítulos do romance são titulados com o nome de um ou do outro personagem, se constituindo como trechos das entrevistas que ambos deram para o documentário. Assim, Laub emprega o foco narrativo em primeira pessoa, variando de Raquel para Alexandre, e utiliza, com primor, de um estilo oral de escrita, o que é uma marca de seu trabalho.

Novo espaço público

O que aproxima seu estilo narrativo da ambiência do novo espaço público, constituído pelas redes sociais, é justamente essa oralidade canalizada pelo narrador em primeira pessoa. Mas não apenas, claro. Aliado a isso, os personagens apresentam vozes sempre preocupadas em convencer o interlocutor e, como resultado desses e de outros recursos, a narrativa alcança a representação de uma verdadeira imanência entre experiência individual e vida política.
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O mais importante, no entanto, para o efeito global do romance, talvez seja a integração de tudo isso com o uso de um jogo de claro-escuro. É que, nas obras do autor, informações que podem ser banais em enredos de outros escritores, são sonegadas ao leitor em um primeiro momento, e o desenrolar da história se dá de maneira tal que esses aspectos terminam por assumir um status de revelação. Mas tais revelações são sempre transitórias, pois acabam levando a outras dúvidas.
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Dessa forma, acompanhamos uma história na qual o que parece dado, visível e transparente (na linguagem) costuma transmutar-se em opacidades (na narrativa), que aos poucos vão se esclarecendo, mas só para se emaranharem de novo e tudo começar novamente. É isso que faz com que Solução de Dois Estados tenha uma aparente mimese com a ambiência – discursiva e social – sobre a qual trata, mas na verdade vai muito além disso, realizando uma investigação em que forma e conteúdo se complementam de maneira harmônica e condizente com as reflexões que propõe.
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Solução de Dois Estados é uma a das mais bem-acabadas representações ficcionais da ascensão contemporânea de determinados modos de fazer política e de realizar o debate público.

Ficha técnica:
Solução de Dois Estados
Michel Laub (Porto Alegre, 1973-)
Companhia das Letras, 2020, 248 páginas

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