Segundo livro da já famosa trilogia de Rachel Cusk, o romance Trânsito tem a mesma protagonista do primeiro volume, a escritora e professora de escrita criativa Faye, recém-divorciada e mãe de dois filhos. Agora, no entanto, em vez de estar com a vida em suspenso enquanto faz uma viagem de trabalho, ela acaba de se mudar, de uma cidade do interior, para Londres. Faye tenta reconstruir sua vida emocional após o trauma de uma separação que já havia ocorrido, na prática, muito antes do casamento acabar.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Assim como no primeiro livro, a estrutura narrativa se constitui principalmente de uma série de encontros da protagonista, em situações mais ou menos comuns. Mas desta vez a capacidade de reflexão e observação de Cusk estará a serviço de uma ideia de passagem, de meio do caminho, de trânsito – em que pese a variedade de temas que a autora aborda.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
O enredo em si não passa de uma discreta moldura: ao chegar à cidade, Faye compra uma casa bem localizada, mas com estrutura precária, e vai contratar alguém para reformá-la. Ela terá de lidar com vizinhos problemáticos nesse processo e, para além disso, fará o que qualquer um faria: trabalhar, encontrar uma amiga, visitar o primo, ir ao salão de beleza, etc.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Reflexões
Cada situação, no entanto, é o ensejo para os personagens contarem histórias sobre eles mesmos e fazerem reflexões tão elaboradas que destoam do elemento prosaico dos fatos narrados e da própria verossimilhança. Mas se trata de um elemento constitutivo da estética de Cusk, construído sob uma escrita saborosa, da qual sempre se destacam o frescor e a originalidade dos raciocínios.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
E, para além das conjecturas e reflexões, a autora não descuida das narrativas (assim mesmo, no plural). Apesar de parecerem cotidianas, elas são quase sempre hipnotizantes e permeadas de significados recônditos. É como um microscópio nos levando a enxergar, a partir da superfície de objetos corriqueiros, um mundo subjacente de estranhas e fascinantes estruturas celulares.
Paisagem urbana
O pano de fundo, na maior parte do romance, é a paisagem urbana londrina, onde Faye havia morado quando mais jovem e para onde retorna agora. Rachel Cusk se utiliza desse cenário para fazer admiráveis paralelos com as histórias que conta, como quando um personagem comenta sobre um velho pub repaginado: “O verniz da gentrificação. Está acontecendo por toda a parte, até na nossa própria vida”.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
As temáticas, por sua vez, vão se multiplicando no decorrer das páginas, às vezes apenas insinuadas, outras vezes tratadas de forma explícita, e outras vezes, ainda, repetidas ou retomadas com variações, mudanças de pontos de vista, gradações. A infantilização das pessoas frente aos próprios desejos é um desses assuntos, bem como o que talvez seja o seu oposto, a conquista de certo amadurecimento.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
O tema da solidão também está presente, quer vista da perspectiva da dificuldade de aceitar-se e conviver com o outro, quer observada como um lugar de reflexão e encontro consigo mesmo. Da mesma forma, Cusk parece discutir o desenraizamento de ângulos distintos: ou como liberação de potencialidades, ou como fonte de sofrimento, de inadaptação.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Movimentos temáticos
Esses “movimentos” temáticos se coadunam com a ideia de trânsito. E o mesmo acontece com experiências narradas de vários personagens, além da situação emocional e perceptiva da própria Faye. Sempre existe, no entanto, um fator de dúvida sobre se, ou quando, ocorrem verdadeiras transformações em suas vidas, ou apenas meras mudanças. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Ao fim do romance, retorna-se com mais peso a um tema tangenciado em vários trechos ao longo da obra: as expectativas socialmente atribuídas à maternidade, e as maneiras como homens e mulheres lidam com isso. Assim estamos de volta, também, ao leitmotiv da personagem-narradora: a crise desencadeada em sua vida com o término do casamento – o que pode até parecer algo banal. Mas apenas parece. É assim que funciona a discreta grandiosidade da trilogia de Rachel Cusk.
Ficha técnica
Trânsito [2016]
Rachel Cusk (Canadá, 1967 – )
Editora Todavia, 2020, 200 páginas