Clássico de Tchekhov ecoa intolerância e autoritarismo contemporâneos

Mais do que uma ofensa pessoal, a situação que leva ao duelo do título da famosa novela de Tchekhov é uma discordância de fundo ideológico e moral. E a temática que esse fato sugere, por si mesma, já é significativa de como as obras literárias duradouras podem ecoar para além de sua época, proporcionando novas leituras e atribuições de sentidos.
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Ivan Laiévski é um jovem de classe média no final do século 19, com formação superior, que se apaixona por uma mulher casada, Nadiéjna Fiódorovna. Ela retribui ao amor e abandona o marido. Para se afastarem da situação de escândalo, formulam o sonho de uma vida tranquila no interior, onde cultivariam seu próprio vinhedo e viveriam seu relacionamento em paz. Eles se mudam, então, de São Petersburgo para uma pequena cidade do Cáucaso.
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Esse, na verdade, é o pano de fundo da narrativa, pois seu início já se dá com Laiévski, dois anos depois de ter chegado ao interior. Ele é um funcionário público de hierarquia mediana, que desistiu do seu vinhedo e que mal cumpre suas obrigações de burocrata, se dedicando mais a beber e aos jogos de cartas. Além disso, sua paixão esfriou e ele passou a sentir o relacionamento como uma prisão que o impede de retornar para a vida culturalmente rica de São Petersburgo.
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Laiévski passa a cultivar o plano de abandonar a mulher e compartilha a ideia com o amigo e médico da cidade, Samóilenko. O conflito inicial da novela se dá na própria consciência do protagonista, dividida entre o desejo de liberdade e o compromisso assumido. Só que essa situação vai se complexificar com a introdução dos personagens que compõe o círculo social do casal e da visão deles no que diz ao relacionamento dos dois. Além do próprio ponto de vista de Nadiéjna e de suas ações.

Fica claro na narrativa o conflito que envolve o desejo de liberdade dos personagens e uma moral social que, apesar de se encontrar em um momento de transição, ainda é rígida o suficiente para limitar as opções tanto de Laiévski como de Fiódorovna – muito mais as dela, na verdade, por ser mulher.

Mas o conflito central da narrativa vai se dar entre Laiévski e o zoólogo Von Koren. De temperamento rígido e autoritário, o zoólogo também faz parte do círculo social do casal e não esconde o ódio que sente pelo funcionário público, considerando-o pernicioso, degenerado e alguém que pode “contaminar” a comunidade. Defende abertamente que as pessoas rejeitem o convívio com Laiévski e Fiódorovna.

Mais do que isso, Von Koren defende que pessoas como Laiévski deveriam ser exterminadas da sociedade e para isso usa como justificativa um darwinismo social pseudo-científico, que parece já em voga naquele momento e que iria influenciar, adentrado o século 20, todo tipo de excrecência autoritária e racista, como é o caso da eugenia, do imperialismo e do nazismo.

Von Koren, então, envolve Laiévski em uma situação tal de intrigas e afrontas que faz acontecer o desafio do duelo. O funcionário público aceita a situação mais por desespero e desequilíbrio emocional, mas esse não é o caso de Von Koren.

Tchekhov, no entanto, não julga seus personagens. Ele simplesmente os apresenta e vai narrando como suas personalidades vão resultando em ações e como o contexto da narrativa vai apresentando contradições e sutilezas do caráter de cada um deles. A construção de tais personagens, aliás, é um dos pontos altos da novela.

Assim, o autor acaba por tematizar questões de costumes, morais e até mesmo religiosas – o personagem do diácono da cidade, que em princípio parece de importância menor, tem participação capital na parte final.

Publicado originalmente em 1891, O Duelo já ecoa literariamente ideologias e contextos históricos que viriam afetar o mundo inteiro nas décadas seguintes. Além disso, o desejo de controle da moral social e as tentativas de exclusão dos padrões “desviantes” são comportamentos ainda bem presentes hoje, mais de um século depois.

Por fim, não deixa de também ser notável que a obra de Tchekhov tenha desenhado de forma precisa um fenômeno que se renova com força no contexto histórico-social de hoje: a recusa da convivência com o diferente e, portanto, a recusa da política, em troca da apresentação de soluções autoritárias e violentas.

Ficha técnica:
O Duelo [1891]
Anton Pavlovitch Tchekhov (1860 – 1904)
Editora 34, 2014, 176 páginas

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