Slimani faz hipérbole trágica de um mal-estar cotidiano

Alguns livros revelam situações sociais e retratos psicológicos de maneira objetiva, solar. Outros fazem isso levando o leitor a uma casa estranha e escura, e apontando um facho de luz para o que querem ressaltar, de modo que seus objetos surgem de um viscoso e desagradável ambiente de trevas. É nesse segundo tipo de romance que se encaixa Canção de Ninar, da franco-marroquina Leïla Slimani.

A obra começa expondo, de maneira passageira, o crime de assassinato de duas crianças, cometido por sua babá. Louise havia sido contratada poucos anos antes pela família Massé, depois que a mãe, Myriam, desiste de se dedicar apenas à maternidade e resolve retomar a carreira.

No início, Louise se revela a funcionária perfeita. Em vez de apenas cuidar das crianças, vira uma faz-tudo na casa. O casal trabalha cada vez mais e fica dependente dos serviços dela. Louise, por sua vez, desenvolve uma dependência diferente, mais profunda e emocional, e vive a vida dos patrões e das crianças enquanto tenta se afastar da sua própria.

Slimani, então, vai dissecar a trajetória de Louise, e também o relacionamento dela com a família Massé. Apesar da linguagem simples e direta, a autora cria um crescente clima de demência e delírio, principalmente relacionado a Louise. Mas o leitor também é envolvido por uma recorrente sensação de mal-estar no que diz respeito aos outros personagens. São pequenos casos de preconceito, consumismo e negligência que vão surgindo de onde não se espera.

Os temas principais tratados na obra estão relacionados às suas personagens centrais. O dilema de conciliar carreira e família, além das expectativas sociais quanto à maternidade, tocam a Myriam. A condição de subalternidade e a exploração emocional dizem respeito à empregada doméstica Louise. Espera-se dela a dedicação e o carinho que as pessoas dispensam apenas a seus familiares, sem que haja uma real contrapartida de cuidados e construção de laços afetivos duradouros.

Assim, a autora construiu uma história em que a tragédia e o mal-estar se constituem numa espécie de hipérbole ficcional para realidades bem presentes no cotidiano social, tanto na França como do lado de cá do Atlântico.

Ficha técnica:
Canção de Ninar [2016]
Leïla Slimani (Marrocos / França, 1981-)
Editora Planeta, 2018, 192 páginas.

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