Despentes cria painel humano de uma França repleta frustração e ressentimento

“A vida costuma se apresentar em duas rodadas: na primeira ela te distrai, te fazendo acreditar que você está no comando; na segunda, ao perceber que você está relaxado e indefeso, ela se volta contra você e te fode.” É assim que a escritora francesa Virginia Despentes resume o contexto pelo qual passa o protagonista do romance A Vida de Vernon Subutex, finalista do Man Booker Prize International de 2019 e best-seller na França.

O livro, no entanto, vai muito além dos altos e baixos da vida do personagem, retratando o impacto sofrido por quem viveu os anos 80 e 90 e tem de lidar com o mundo das primeiras décadas dos 2000. O avanço de uma globalização excludente, a precarização do trabalho, o desmonte do Estado de Bem-Estar Social e a imigração em massa de pessoas vindas dos países que foram depenados pela exploração do colonialismo e por guerras: tudo isso está la.

Vernon é um cinquentão que foi dono de uma loja de vinis e, depois, de CDs, que acabou indo à falência com a chegada do Napster. O lugar marcou época na cena rock de Paris, mas, após fechar as portas, ele conseguiu pagar as contas por apenas um ano. E para isso usou do e-bay para vender os discos restantes e itens de colecionador.

Ainda conseguiu ter uma sobrevida financeira graças a ajuda de um amigo, Alex Bleach, antigo frequentador da loja que acabou virando estrela do rock, que pagou seu aluguel por dois anos. Mas Bleach acaba morrendo de uma overdose e o amigo falido fica na pior. Não apenas por causa disso, mas também porque viu vários outros camaradas morrerem em um curto intervalo de tempo.

Sem dinheiro pra pagar as contas e deprimido com as perdas e o mundo ao seu redor, ele acaba sendo despejado. Na hora de ser colocado pra fora, consegue juntar apenas poucos pertences e três figas VHS gravadas pelo próprio Bleach, com um longo autodepoimento. Apesar de nunca tê-las assistido, ele pressente que elas podem ter algum valor.

Com apenas uma mochila nas costas, Vernon vai a cafés e restaurantes aproveitar o wi-fi para abrir o Facebook e procurar por amigos que talvez possam abrigá-lo por algumas noites. É a partir daí que Despentes vai engendrar um painel da França contemporânea. Um dos primeiros a ser procurado por Vernon é um cineasta frustrado, Xavier, para quem ele conta a história das fitas. É assim que a notícia do último depoimento da estrela do rock começa a se espalhar.

A perspectiva de Xavier vai oferecer um amargo retrato da indústria cinematográfica francesa. Após isso, os encontros do protagonista vão proporcionar o mesmo no que diz respeito à indústria da música, do mercado financeiro e das redes sociais – sempre do ponto de vista de um personagem diferente. E o que quase todos têm em comum é um mal disfarçado ressentimento, talvez causado por uma sociedade que lhes tirou o chão de proteções contra o mercado e que assistiu a instituições que proporcionavam identidades sólidas se esfacelarem aos pés dos indivíduos.

Os personagens também se revelam de algum modo insatisfeitos ou oprimidos com a vida que levam, no entanto a autora não poupa quase ninguém e constrói retratos nos quais, mesmo quando eles são mostrados como vítimas, também se revelam capazes de violências ou tentam se aproveitar de quem podem. Isso quando não são abertamente predadores, racistas ou alpinistas sociais. Com o tempo, várias dessas pessoas vão passar a procurar por Vernon, por motivações diferentes, mas relacionadas em alguma medida às fitas que Alex Bleach gravou e que ele possui.

Despentes constrói uma narrativa ágil e consegue isso mesmo fazendo mudanças constantes do ponto de vista, que a cada capítulo varia de Vernon para outros personagens. Ela usa intensamente do discurso indireto livre, sem abdicar, no entanto, de um narrador (em 3ª pessoa) que emite suas opiniões, frequentemente corrosivas, e em outros momentos mais compreensivas, mas sempre diretas. Assim, deu vida a um romance dinâmico, esteticamente instigante e tristemente atual.

Ficha técnica
A vida de Vernon Subutex – vol. 1 [2015]
Virginie Despentes (França, 1969 – )
Companhia das Letras, 2019, 336 páginas.

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