A história íntima de uma geração

Se é possível dizer que estamos em um momento de fronteira histórica ou de fim de ciclo, então também se pode observar que existe uma geração que vivenciou e incorpora esse período mais do que qualquer outra. São as pessoas que hoje estão na faixa dos 40 anos, que eram crianças na década de 1980 e viram pela TV, sem entender muito bem do que se tratava, o movimento das Diretas Já, a Constituinte e a redemocratização do país.

Essa geração cresceu em um ambiente de liberdade política, virou adolescente ouvindo rock nacional nas FMs, alugando filmes em fitas VHS e lendo letras de Chico e Caetano em livros de português do ensino médio. Ainda na casa dos 20 e poucos, viu um operário virar presidente e participou de uma melhoria da qualidade de vida que pareceu generalizada entre a população. Muitos devem ter pensado, da forma mais espontânea, que a História segue sim uma estrada, se não brilhante, pelo menos nova e bem iluminada.

No entanto, para usar um lugar-comum, algo se perdeu no meio do caminho. Ou será que o meio do caminho guardava lugares escuros e cheios de mofo, que na verdade sempre estiveram lá, apesar de um tanto ignorados ou despercebidos? “Dos Pedaços”, primeiro romance do cineasta Aristeu Araújo, tematiza a história íntima dessa geração, que foi da alegria solar de uma música dos Paralamas do Sucesso ao que parece ser, hoje, a beira de um abismo.

Fronteiras

Como Aristeu não se apega muito a regras nem formatos fixos, o livro confunde deliberadamente as fronteiras entre história curta e romance. Se o leitor me pedisse um conselho, diria para aproveitar cada capítulo como um conto independente, deixando-se surpreender pelas conexões que, aos poucos, vão surgir entre eles.

A primeira história se chama “O Sofá” e pode-se dizer que contém o enredo central do romance. Nela são narradas duas ocasiões da vida de um casal, Dolores e Carlos, a partir de instantâneos que se passam numa casa de praia, que eles compraram quando seus dois filhos gêmeos eram pouco mais do que bebês. Uma das “cenas” iniciais guarda muito da ambiência dos curta-metragem do cineasta, que costuma combinar um contido tom poético com uma melancolia quase onipresente. Dolores, que gosta de pintar paisagens, está admirando o mar verde e o horizonte muito azul à sua frente e, ao baixar a vista, se enche de afeto com a imagem do marido e dos filhos, dourados sob o sol, brincando na areia branca:

Três lindos seres. Amados por ela com uma intensidade que nunca experimentara. Amados com todo o coração, com o estômago e intestinos. Amados com a pele, os cabelos, os poros e as unhas. Amados com os próprios bicos dos seios. Amava olhá-los sem que eles percebessem. Amava seus movimentos, os sons brutais que, machos, produziam. Amava os cheiros, o toque. Amava o peso deles quando era acordada no sábado de manhã – a cama cheia – para o café. Amava e queria continuar amando.

Dolores experimenta um instante de plenitude – lindamente descrito –, mas antes disso o leitor já havia travado contato com o fato de que a personagem convive, e continuará a conviver, com um senso de tragédia que se esgueira, por algum motivo pouco claro, dentro de si.

Corta-se para uma década depois: as crianças são adolescentes e agora entediam-se quando vão à casa de praia; e as construções ao redor, mais altas, deixaram apenas um resquício do mar que o casal conseguia ver de sua varanda. Para completar, Carlos insiste em altear o muro da própria casa e em tomarem medidas de segurança, devido aos frequentes assaltos que assolam a vizinhança. As coisas agora parecem desgastadas e frágeis e o medo de Dolores, que fora domesticado com o tempo, ameaça ressurgir como profecia.

Conto de infância

Os quatro capítulos ou contos seguintes vão ajudar a formar uma espécie de painel dessa geração, abordada em vários momentos de seu percurso de vida. Assim, o próprio Carlos ressurge aos sete anos, num delicado e pungente conto de infância, “Os Marimbondos”. Filho de uma família de classe média baixa, empolga-se quando chega em casa a primeira TV a cores. Seu pai, que assiste no telejornal as passeatas pelas eleições diretas no Brasil, se impressiona com tanto amarelo e acha que, agora, o mundo lhe aparece na tela como realmente é. Por outro lado, não chega a encarar aquilo tudo como algo que deva ou possa tomar parte.

Já Dolores é retratada em sua adolescência, no capítulo “A Pólvora”, quando se muda de cidade com os pais e chega a uma nova escola. Nela vai conhecer a melhor amiga, apaixonar-se, fazer parte de uma turma e compartilhar interesses musicais e literários. Nesse recém-descoberto e interessante mundo, toma-se caipirinha com pólvora em uma festa à beira-mar, ouve-se Smashing Pumpkins e Radiohead em fitas cassetes e lê-se edições surradas, passadas de mão em mão entre os amigos, de Salinger e Herman Hesse. O grupo, no entanto, é bastante heterogêneo e nem todos têm uma vida estruturada como parece ser a da jovem Dolores.

Em outra história, “O Soldado”, o personagem Souza é um policial militar que perde o chão quando a filha de apenas dois anos é internada às pressas, depois de contrair meningite. Após semanas de expectativa e angústia, ela finalmente recebe alta e o soldado, aliviado e emocionado, promete à mulher: Não vou deixar que nada de mau aconteça com vocês duas. Eu vou cuidar de vocês. E ele falava na certeza de quem pode mudar a rota dos furacões e era absolutamente sincero. Mas o romance parece nos dizer: se não conseguimos controlar integralmente nem mesmo a nossa natureza, que dirá fenômenos como furacões e marés, que estarão aqui muito depois que nós, como espécie, já não existirmos mais.

Ilusão de controle

O descortinamento dessa ilusão de controle ou de estabilidade fica ainda mais claro no conto “A Banda Cover”, no qual o advogado Albuquerque tenta reatar o casamento, que está em frangalhos. As lembranças de quando ele e a mulher se conheceram, na universidade, e o desejo que tinham de atuar em projetos políticos coletivos, só realçam uma decadência atual que tem a ver com a passagem do tempo – já possuem filhos adultos – mas que não vem apenas disso. Ela também tem relação com uma série de pequenas negligências, um pouco de tudo o que não era importante sendo prensado, sendo posto em camadas geológicas.

Essa referência do tempo medido em eras, aliás, contrasta com a ideia de velocidade incontrolável que surge na seção final do romance, quando o casal Dolores e Carlos retornam à cena e o círculo narrativo se fecha, assim como todo um arco histórico. A habilidade, patente no livro, de representar contextos sociais e políticos em narrativas tão íntimas, e sem nenhum alarde, demonstra a habilidade de um autor maduro, que, apesar de estreante na ficção literária, já tem cerca de 20 anos de experiência no cinema.

Assim, Dos Pedaços é um romance de geração que fala diretamente ao tempo presente, que descreve aspectos socioculturais de uma época e simultaneamente dialoga com traços atemporais da condição

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