Ao retratar sua geração e Cuba de hoje, Padura faz reflexões que ultrapassam tempos históricos

Por trás de seus enredos policiais, o escritor cubano Leonardo Paudura continua com seu projeto de fazer um retrato atual e vívido de seu país. É o que acontece neste seu novo romance, A Transparência do Tempo, lançado no início do ano pela Boitempo. E a essas duas vertentes – a policial e a político-antropológica –, ele acrescenta uma terceira: a histórica, fazendo um paralelo do quanto existe de universal entre a derrocada social e humana por que passa a pequena ilha do Caribe e o mesmo fenômeno tantas vezes repetidos em outras paragens históricas e ideológicas.

Seu o protagonista é o tradicional detetive Mário Conde, um ex-policial que sempre foi um homem da lei idiossincrático, tendo aversão à violência, evitando o uso de armas e com um frustrado sonho de virar escritor. Em A Transparência do Tempo, Conde está prestes a completar 60 anos e detesta a chegada da velhice. É neste momento um tanto melancólico que lhe surge um amigo da época do pré-universitário, Boby Roque, reaparecendo em sua vida, depois de décadas, para lhe pedir uma ajuda e o contratar para um serviço.

A Virgem de Regla

Subestimado pelo grupo de antigos amigos por motivos machistas – a desconfiança de que fosse gay – Boby Roque ressurge muito bem de vida, obrigado, inclusive melhor que os velhos colegas, encarnando a profissão de comerciante de quadros e peças de arte. E é daí que vem o problema. Durante uma viagem de negócios que fez a Miami, o seu amante mais jovem furtou tudo o que pôde de sua casa – desde joias, passando por móveis e obras de arte medianas, até a imagem sacra de uma Nossa Senhora, A Virgem de Regla, uma herança de profundo valor sentimental na família, segundo conta Boby.

A Conde não agrada muito voltar à atividade de detetive – atualmente ele tenta sobreviver comprando e revendendo livros raros. Mas o saudosismo dos velhos tempos e a invocação, feita por Boby, da memória da amizade antiga, o convence, e ele resolve que vai tentar encontrar o criminoso, conhecido por Rayel, e principalmente a imagem religiosa de uma Nossa Senhora negra, segurando um Jesus Cristo também negro nos braços

Padura segue quase à risca as convenções do gênero policial, apesar não construir nenhum triller agitado e cheio ação. Mas o essencial de sua obra vai muito além disso. Ele descreve o estado de decadência e transformação econômica da ilha, com o surgimento de vários segmentos sociais, a começar por aquele composto por Boby e seu círculo de revendedores de arte, que fazem do drible às regras uma especialização, nem sempre legal ou ética – o que, nesse caso, acaba proporcionando a dissipação do patrimônio artístico e cultural cubano em favor de países estrangeiros.

Novos ricos

Além disso, Conde descobre, surpreso, em meio à sua investigação, que cresce nas periferias de Havana o que havia sido extinto por décadas: a miséria das famílias que vêm do interior do país buscar melhores condições de sobrevivência e se instalam em locais muito parecidos com as nossas favelas. Por fim, também surgiram os novos-ricos, trazidos pela abertura econômica, que vivem em um mundo à parte de abundância e sofisticação.

E onde se situa Conde em meio a tudo isso? Junto a seus amigos, ele faz parte da geração que cresceu após a revolução, acreditou em seus ideais e até experimentou um momento histórico em que a desigualdade social foi equacionada e todos tiveram oportunidades semelhantes. Mas as graduais decepções com a falta de liberdade, e a posterior crise dos anos 1990, levou-os a viver a desilusão de verem seus sonhos pessoais e coletivos naufragados, mesmo que tenham se recusado a tentar sair país, devido a um sentimento de pertencimento talvez insuperável. O interessante é ver tudo isso narrado “de dentro” e não a partir do “Fla-Flu” que virou boa parte da política ocidental.

Capítulos históricos

Mas a cereja do bolo, na verdade, é que Padura intercala a investigação detetivesca com capítulos históricos, nos quais se conta qual teria sido a origem da imagem da Virgem negra, muito mais antiga e valiosa do que Boby quer fazer crer a princípio. Assim, o leitor é levado pela derrota das Cruzadas, pela queda dos Reinos Cristãos do Oriente, passando pela derrocada da Ordem dos Templários, pela Guerra Catalã (século XV) e pela Guerra Civil Espanhola (1936-1939) – tudo construído por uma cuidadosa pesquisa, além de interessantes e significativos personagens

Ao contrário de serem protagonistas de suas próprias vidas, os personagens de A Transparência do Tempo parecem seres que se debatem entre as opções muito restritas que lhes são dadas. Isso acontece ora devido às condições e comoções históricas, ora pela origem social dessas pessoas, ora pelas muitas mitologias – religiosas ou não – que inventamos ao longo dos tempos e que, em vez de servirem para nos humanizar (a condição humana é uma construção social e histórica), nos aprisiona com tanta frequência.

Mário Conde

O herói Mário Conde se acabrunha não só com a velhice, mas também com o que ela traz de compreensão de tudo isso. E ainda pela possibilidade de perda, cada vez mais iminente, do pouco de satisfatório que construiu ao longo da vida: o círculo social com os indefectíveis amigos Magro Carlos, Coelho e Candito, e a mulher que, ele não entende muito bem por quê, o atura já há 20 anos. Tratam-se todos de personagens que reaparecem em quase todos os livros de Padura que têm Conde como protagonista.

A Transparência do Tempo é um romance de espectro amplo, por mesclar descrição social e pesquisa histórica; por misturar um gênero literário pop, como o policial, com certas reflexões políticas e filosóficas instigantes; e por combinar a empatia com os homens e mulheres presentes com uma fina percepção da “transparência do tempo”: tanto no que ele expressa de repetição dos erros humanos, como na sua capacidade de, inexoravelmente, tirar tudo o que temos de mais precioso. Trata-se de Padura em grande estilo e de um romance imperdível.

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