As histórias de ficção científica, assim como toda narrativa, são uma forma de conhecimento que, em seus melhores momentos, podem se traduzir em nos dar um novo olhar sobre o outro, em identificar-se com ele em alguma medida, estimulando a alteridade.
É exatamente isso o que faz, de modo brilhante, o romance Flores para Algernon, de Daniel Keyes, lançado no ano passado pela editora Aleph. De linguagem fluida e envolvente, mas também poética em vários momentos, o livro narra a vida de Charlie Gordon, uma pessoa com deficiência mental que quer superar algumas de suas limitações cognitivas e adquirir novos conhecimentos.
Charlie tem 32 anos, vive sozinho e trabalha em uma padaria, ganhando 11 dólares por semana. Portador de uma doença rara, ele tem apenas 68 de QI. A professora da escola para pessoas com deficiências na qual estuda, e onde aprendeu a ler e escrever de maneira limitada, o indicou para uma cirurgia e tratamento experimentais que a Universidade de Beekman, em Nova Iorque, desenvolveu e já aplicou com sucesso em roedores. O caso de maior êxito foi o ratinho Algernon.
A cirurgia será um sucesso e Charlie vai chegar perto de triplicar seu QI, tornando-se um gênio. No entanto, ele não esperava que a ampliação de sua consciência o faria ter de lidar com seus traumas do passado – relacionados ao abandono da família – e passar a ver com outros olhos as pessoas com as quais convive no presente.
Assim, vai questionar tanto a forma como era tratado pelos amigos da padaria, como também a visão que o cientista-chefe da experiência tem do antigo Charlie: uma não-pessoa cuja existência só ganha sentido na medida em que proporciona a “criação” do novo Charlie. Além disso, ele também será surpreendido pelo fato de que não existe certeza se os efeitos da cirurgia serão permanentes.
A narrativa é contada inicialmente em primeira pessoa, pelo protagonista, por meio dos “relatórios de progresso” que ele é levado a escrever desde o início de sua participação na experiência. Com o passar do tempo e com a evolução de Charlie, ele se sente tão diferente da pessoa que foi que frequentemente se refere ao seu eu do passado como se fosse um outro – é quanto o foco narrativo varia para a terceira pessoa.
O passado, aliás, tem uma grande importância no romance, porque Charlie realiza um esforço constante para desbloquear suas memórias e, quando consegue, o faz com a clareza que suas novas e especiais capacidades cognitivas permitem. Sua insistência para isso está relacionada à busca por autoconhecimento. É que, apesar da distância que sente de si mesmo no passado, ele sabe que só conseguirá superar suas dificuldades emocionais se conseguir reconstituir sua história e mudar a maneira – consciente ou inconsciente – como lida com ela.
Em uma primeira camada, é claro que Daniel Keyes tematiza a questão da inserção social das pessoas portadoras de deficiências. O que, por si mesmo, já é um mérito, ainda mais quando se tem em vista que o romance teve sua primeira edição publicada, nos EUA, em 1968 (e de lá pra cá se tornou um clássico contemporâneo de sci-fi). Mas Flores para Algernon também discute, por exemplo, a questão da ética na ciência, a capacidade e a necessidade do perdão e a aceitação do diferente.
E o romance ainda vai além disso, já que a busca por conhecimento e autoconhecimento empreendida por Charlie pode ser vista de modo ainda mais abrangente. A jornada do personagem nesse extraordinário livro não deixa de ser uma emocionante metáfora da história de ascensão e queda que a vida de qualquer ser humano está inevitavelmente submetida.