Existem escritores que optam, em seus trabalhos, por se afastar da realidade político-social mais imediata, advogando um certo distanciamento, seja por qual motivo for. Existem outros que fazem exatamente o contrário, fazendo da crítica ao seu tempo quase uma profissão de fé. Este segundo é o caso de James Baldwin, e de seu romance Se a Rua Beale Falasse, publicado pela Companhia das Letras em janeiro deste ano.
Já na primeira página, Baldwin nos apresenta sua protagonista e narradora, Clementine Rivers (a quem chamam de Tish). Ela está sentada na sala de visitas de uma prisão, em frente ao seu namorado, separados por uma divisória de vidro. E pensa em como dar a ele a notícia de que está grávida, temendo pela sua reação e tentando antecipá-la em sua mente. Isso irá ajudar ou atrapalhar o homem que teve sua vida virada pelo avesso após ser acusado injustamente de estuprar uma outra mulher?
Assim, somos jogados logo de cara na subjetividade de Tish, e é através dos olhos dela que vamos descobrindo quais fatos levaram seu namorado a ser preso. O romance também se desenvolve por meio de outras duas linhas narrativas, apresentadas de maneira alternada: a luta da protagonista para libertar Alonzo Hunt (a quem todos chamam de Fonny) e a história do relacionamento dos dois. Eles se conhecem desde crianças, quando viviam no bairro negro do Harlem, em Nova York.
Fonny teve um pai que o amou de maneira autêntica, mas uma mãe que o rejeitou emocionalmente, seja porque ele não a acompanhou na fé religiosa, seja porque tinha a cor da pele mais negra que a das duas irmãs. Quando adulto, ele tenta enveredar pela carreira artística e, para se libertar do difícil ambiente familiar, vai morar em um pequeno quarto no bairro boêmio – e branco – do East Village.
A relação de amizade da infância entre ele e Tish se transforma nesta fase e é quando, depois de um período de namoro, ele decide procurar um apartamento para poderem se casar e morarem juntos. É justamente aí que o sistema jurídico-policial vai tentar moê-los em uma engrenagem claramente racista.
Uma das grandes forças do romance de Baldwin se dá pela escolha da narradora. É que o período da vida de Tish contado no livro é de descobertas intensas: do sexo, do amor, da amizade, mas também da violência contra as mulheres e do racismo, seja aquele que se apresenta ostensivamente, seja um outro que paira no ar, e que ela percebe ao caminhar pelas ruas da parte branca de Nova York.
Também contribui para o poder desse ponto de vista o fato do escritor usar a linguagem da comunidade negra do Harlem, descrever seu ambiente e costumes e rechear o livro de citações a músicas de Ray Charles, Marvin Gaye, Billie Holiday e Aretha Franklin, além dos spirituals.
O romance ainda tem o mérito de ser crítico sem ser maniqueísta. O racismo incorporado pela própria mãe de Fonny, por exemplo, além do seu moralismo baseado no fanatismo religioso, mostram uma realidade mais complexa do que teria um livro meramente panfletário.
Ainda assim, Baldwin tece críticas duríssimas contra o stablishment de uma sociedade que ele descreve, pela boca de Tish, como “inferno democrático”. Também não poupa, mais especificamente, o racismo entranhado no sistema judiciário: “juízes compreensivos ou meramente inteligentes são tão raros quanto nevascas nos trópicos”. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Apesar do sofrimento e da aspereza social em que vivem os personagens, o romance é perpassado por um certo sentimento de ternura melancólica e por uma coragem que às vezes se dobra ou se perde, tamanho são os desafios, mas que às vezes perdura e produz frutos, artísticos como as esculturas de Fonny e a literatura do próprio Baldwin, ou sociais, como o Movimento Pelos Direitos Civis.
Publicado originalmente em 1974, muitos aspectos de Se a Rua Beale Falasse continuam atuais, nos EUA e aqui, mesmo que setores da sociedade tentem esconder isso. Ler o romance serve para lembrar, como diz sua protagonista, que “nem o amor nem o terror deixam a gente cego: só a indiferença faz isso”.