Com estilo inventivo, Sheila Heti procura a si mesma em meio ao tabu da maternidade

Existem decisões em nossas vidas que são tão grandes que convivemos com a dúvida por anos, até que consigamos escolher o que fazer. Isso demanda um longo processo de discernimento de nossas próprias razões e de avaliação das pressões externas, além da tentativa prever as consequências do futuro ato. Nesse percurso, às vezes mudamos de opinião mais de uma vez – ou muitas – e somos frequentemente influenciados por nossas emoções, passageiras ou não.

Agora imagine uma dúvida como essa girando em torno de um tema ancestral, cercado de tabus, estereótipos e que envolve relações de poder que começam dentro da própria família e se espalham pela sociedade. E que, além disso tudo, também está relacionado à própria fisiologia humana. Essa é a dimensão do desafio da escolha feminina entre ter ou não filhos – para quem conscientemente se propõe a decidir –, mesmo depois dos avanços na condição social da mulher nos últimos 60 anos.

E esse também é o motor que move a narrativa do romance Maternidade, da canadense Sheila Heti, publicado em março pela Companhia das Letras. No entanto, mesmo que a questão tenha tamanha amplitude, o livro tem o mérito de evitar que seu enredo seja tocado por qualquer tipo de grandiloquência ou por fórmulas argumentativas já gastas pelo debate social.

A história se apresenta de maneira simples e, em princípio, até banal: uma mulher com 36 anos se aproxima da meia idade e, apesar de nunca ter desejado ter filhos, sente “o chamado biológico” e começa a se questionar sobre o assunto. Não apenas porque o instinto maternal às vezes aflora e seu período fértil se aproxima do fim, mas também porque ela tem um casamento estável e, ao seu redor, vê praticamente todas as amigas e colegas da mesma faixa etária optando por engravidar.

Essa protagonista é a própria Sheila Heti, ou pelo menos a narradora Sheila Heti – o que quer dizer que o livro tem muito de autoficcional –, uma escritora de classe média e origem judia, casada com um advogado que tem uma filha de um relacionamento anterior. Ele não deseja ser pai novamente, mas admite a ideia, caso ela tenha certeza de que é realmente o que quer.

Apesar de enxergar a beleza e satisfação que a maternidade pode trazer, Heti não tem ilusões sobre o trabalho árduo que é criar um filho e teme que a tarefa a impeça de levar à frente a profissão que escolheu para si, a de escritora. O fato dela lidar com arte e criação traz um interessante paralelo, que a conduz a se questionar: a única forma de trazer vida ao mundo é dando à luz uma criança? Ou existe um imaginário que impõe o papel de mãe necessariamente à identidade feminina?

Essa discussão que a personagem faz consigo mesma toma a forma de um monólogo, que é entrecortado pelos fatos do seu cotidiano: o relacionamento com o marido, uma turnê de divulgação do novo livro, um encontro com amigas da época de faculdade. E logo Heti passa a retratar o processo de decisão sobre a maternidade no projeto do livro que estamos lendo.

Com o passar do tempo, ela perceberá que o momento se trata de uma fase de transição de sua vida, e é quando resolve ir fundo em uma autoanálise que vai envolver aspectos de seu casamento e de suas próprias dificuldades emocionais. Sua busca por autocompreensão também vai se relacionar com o difícil relacionamento que teve com a mãe e a memória familiar desta com a sua avó. Assim, o tema da maternidade se expande numa teia que Heti vai tentar entender e aprender a lidar.

Ao longo do romance, a personagem vai fazer uso de vários artifícios para ajudar a si mesma a refletir, que vão do I Ching à cartomancia. Não é que acredite no aspecto místico de tais recursos, mas os utiliza para criar novos pontos de vista para seus raciocínios. Isso influencia a própria estrutura do romance – principalmente no caso do I Ching, com sua forma de perguntas e respostas aleatórias, que estão sempre se reciclando e reinterpretando – e proporciona belos momentos poéticos e humorísticos.

O processo de narração de Heti vai se constituir numa corajosa busca de si mesma, mas que vai se expandir num rico painel a respeito do tema da maternidade. Ela realiza esse feito por meio de uma estrutura narrativa dinâmica e que pode até parecer simples, mas cujos efeitos de verossimilhança e aprofundamento psicológico demonstram a força de sua escrita.

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