Os discursos de
formaturas feitos por escritores vêm se constituindo quase num novo gênero
literário nos Estados Unidos. Talvez dois dos mais conhecidos sejam o de David
Foster Wallace, proferido no Kenyon College, em 2005, e o da inglesa J. K.
Rowlling, em Havard, no ano passado.
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Mas o que esperar dos discursos de formatura de um dos mais
irreverentes, sarcásticos e divertidos escritores de ficção científica, Kurt
Vonnegut? Eles foram reunidos no livro “O que tem de mais lindo do que isso?”,
lançado pela Editora Rádio Londres neste ano. O obra tem nove textos desse
tipo, além de seis outros discursos feitos pelo autor em ocasiões diferentes de
formaturas, mas cujos formatos são próximos.
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O melhor do livro é sentir como se estivesse tendo um
encontro com Vonnegut. Nesses textos, ele retoma muitos dos temas subjacentes
aos seus romances, só que aqui o faz diretamente, vocalizando suas ideias,
opiniões e pontos de vista – o que permite ao leitor fazer um interessante
entrecruzamento entre ficção e realidade.
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Mas esse sentimento de proximidade não se dá apenas porque
ele expõe sua visão de mundo de maneira direta e informal, mas também porque
muitos dos discursos (e também o prefácio do livro) falam de trechos e de
aspectos da vida de Vonnegut. Assim, conhecemos um pouco dos detalhes de seu
ambiente familiar, trajetória profissional, fracassos e conquistas.
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E ele vai fazendo referências a essas passagens biográficas
enquanto discorre sobre uma miríade de temas. Alguns deles aparecem de maneira
recorrente, devido inclusive à ocasião da formatura, como é o caso dos ritos de
passagem, a valorização do conhecimento humano e a necessidade de pertencimento
e de dedicação a uma comunidade – vista como microcosmo social.
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Mas Vonnegut é um humanista e um homem de seu (nosso) tempo.
Então, ele vai tocar em assuntos que vão do pacifismo à tecnologia como objeto
desagregador e mercantilista – e olha que as redes sociais ainda nem tinha
surgido direito.
E entre um ponto e outro,
existe espaço para ele discorrer sobre a importância da arte ou o seu uso como
instrumento de dominação de classe; a polarização da política; a cultura de
celebridades; o relativismo cultural; a liberdade de expressão versus a
censura; a laicidade do Estado; os direitos humanos; a organização da sociedade
civil; o uso ético ou destrutivo da ciência, etc.
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No entanto, não espere de Vonnegut nada parecido com aquele
modelo dissertativo convencional. O seu discurso é um tanto caótico e, com
certa frequência, só conseguimos reconstituir sua linha de raciocínio ao final
do texto. Ele também não está nem um pouco preocupado em expor seu ponto de
vista a partir de análises pormenorizadas e cheias de dados, mas se dedica
muito mais a imagens ilustrativas e metáforas, por exemplo.
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É por isso que tenho minhas dúvidas se o livro vai interessar
e envolver quem não seja admirador de pelo menos um de seus romances. Mas se,
ao contrário disso, você conhece minimamente a obra do autor, esse livro se
torna obrigatório.
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É que, apesar do registro de linguagem diferente dos
romances, muitos dos elementos da prosa do escritor estão presentes. Seus
textos continuam, aqui, cheios de humor, nonsense, ironia, crítica mordaz e,
por incrível que pareça, também muita generosidade. Além disso, por trás do
estilo simples e direto, ele nos presenteia com pérolas de profundidade que
podem passar despercebidas pelos menos avisados.
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Vou dar apenas um exemplo, dentre muitos. Ao falor sobre o
humanismo, Vonnegut diz que “nós, humanistas, nos comportamos da forma mais
honesta possível sem nenhuma expectativa de recompensa ou punição na vida após
a morte. Fazemos nosso melhor para servir a única entidade abstrata com que
temos familiaridade, ou seja, a nossa comunidade”.
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O que tem de mais lindo do que isso?