Os contos de formação de Geovani Martins

Algumas obras são de leitura obrigatória, porque se inserem no contexto político-social de forma tão oportuna que viram quase um personagem do momento histórico. Acho que esse é o caso de O Sol na Cabeça, do estreante Geovani Martins.

O livro contém 13 contos, que têm em comum o fato de retratarem a vida dos jovens da periferia do Rio de Janeiro a partir do ponto de vista deles. Diga-se que Geovani, de 27 anos, é morador do Morro do Vidigal, estudou até a oitava série e é filho de um jogador de futebol amador e uma cozinheira.

Em certo sentido, a obra é uma crônica da vida na periferia e pelas suas histórias se assiste à violência no cotidiano da favela, a opressão policial, o subemprego, a discriminação vinda “do asfalto”, a relação dos jovens com as drogas e a convivência familiar dentro de todo esse contexto.

Por outro lado, O Sol na Cabeça também é uma espécie diferente de “romance” de formação. Diferente, claro, porque é um livro de contos. Mas os personagens – crianças e jovens de várias idades – têm experiências vindas de um mesmo universo e que são tão significativas que parecem compor as motivações e os possíveis caminhos da vida de uma única e simbólica pessoa.

Dentro desse segundo aspecto, vemos tematizadas as relações de amizade, os ritos de passagem, os relacionamentos amorosos e a vida interior de muitos personagens (aqui vale destacar contos de aspecto mais psicológico e existencial).

Tudo isso costurado por uma dicção que, em vários contos, reproduzem de forma espantosa uma vibrante linguagem oral, que não deixa de também ser um elemento de identidade dos personagens e de reflexo de sua cultura e vivência.

E aqui fechamos o círculo, ou seja, O Sol na Cabeça é obrigatório porque dá voz a um grupo social que historicamente não tem o direito de expressá-la. E faz isso em um momento em que ganha força a ideia de que menos investimentos sociais e mais opressão (e tropas nas ruas) vão resolver problemas que têm origem na formação da desigual sociedade brasileira.

Fiz essa segunda parte da resenha porque seria um erro não falar diretamente de, pelo menos, um dos contos de O Sol na Cabeça. Até porque o primeiro deles, Rolezim, é digno de estar em qualquer antologia do conto brasileiro contemporâneo.

A história é narrada em primeira pessoa, por um garoto que acorda no fim de semana com um sol escaldante (“não dava nem mais pra ver as infiltração na sala, tava tudo seco”) e resolve ir à praia. Isso, por si só, já acarreta uma série de “desenrolos”: arrumar o dinheiro da passagem, convencer os amigos a irem junto, enfrentar o ônibus lotado, etc.

Chegando na praia, outro desafio: arrumar a seda pra maconha. A história vai contando esse dia na vida do narrador, entremeada por seus pensamentos e recordações, e consegue assim o feito de construir todo um universo social, familiar e emocional em poucas páginas. E a ida à praia acaba sendo um reflexo das implicações, para o personagem, do encontro entre o morro e o asfalto.

O conto é aquele em que a linguagem oral se apresenta de forma mais intensa, o que é feito com ritmo perfeito e, assim como a maioria das histórias do livro, mistura situações tristes, engraçadas e tensas, além de ter um final impactante.

Mas, é importante dizer, O Sol na Cabeça, como qualquer livro de contos, é irregular em termos de qualidade, apesar do saldo positivo superar em muito as histórias mais fracas. Além disso, existe uma unidade temática e lê-se o livro quase como se fosse uma só história história.

A variação de linguagem que o autor utiliza – em alguns contos predomina o registro oral, em outros o registro culto, e em outros a mistura dos dois – funciona bem na maioria das vezes. Mas, em algumas poucas, desanda para uma linguagem meio quadrada e pouco fluente, que não convence.

Além de Rolezim, os destaques vão para Espiral, Roleta-russa, O caso da borboleta, A história do periquito e do papagaio e Travessia.

Se no livro de estreia Geovani Martins já fez tudo isso, imagine o que vem por aí.

Ficha técnica:
O Sol na Cabeça [2018]
Geovani Martins (RJ, 1991-)
Companhia das Letras, 2018, 112 páginas.

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