Vonnegut peca por didatismo em As Sereias de Titã

Sabe quando você tem os ingredientes certos e um cozinheiro experiente e talentoso, mas mesmo assim algo sai errado e o prato fica aquém do esperado? Não é que seja ruim, no entanto a refeição não é tão boa quanto outra que provamos antes e da qual gostamos muito. É mais ou menos isso o que acontece com o romance As Sereias de Titã, do escritor americano Kurt Vonnegut.

As características do estilo do autor estão lá: enredo mirabolante, sarcasmo inteligente e anárquico e o uso recorrente a situações e contextos absurdos. São recursos que ajudam a criar o ambiente que lhe permite, por meio do contraste, abordar e criticar o mundo “normal”, aquele de fora da ficção.

É assim que Vonnegut, em As Sereias de Titã, satiriza tanto a elite tradicional como os novos-ricos; tanto o cassino que virou o capitalismo financeiro como a suposta moral cristã das igrejas cristãs; o militarismo estatal e as superstições e passividade acrítica do homem médio.

Na história, Niles Rumfoord é um bilionário americano do futuro que, pilotando sua própria nave espacial, na companhia de seu cachorro, Kazak, acaba entrando em um fenômeno astronômico chamado infundíbulo cronossinclástico. Isso faz com que eles sejam desmaterializados e passem a existir na forma de um fenômeno de onda, vibrando por uma área do espaço de maneira cíclica.

Essa transformação o faz, junto com Kazak, viajar pelo Sistema Solar e, aparentemente, também proporciona que sua consciência viaje no tempo, de modo que tenha a percepção do futuro. Além disso, ele se materializa na sua casa, a cada 59 dias, durante uma hora. Complicado, não é? Mas o importante é saber que esse fato existe para transformar Niles Rumfoord na figura de um oráculo.

Ele vira uma atração e multidões circundam os muros de sua mansão a cada vez que vai aparecer: todos em busca de previsões e de sentidos para a existência. Ele, no entanto, não recebe nem faz profecias para ninguém. Mas um dia, abre uma exceção para Malachi Constant, um sujeito de comportamento dissipador e desregrado, dono de uma enorme corporação, a Magnum Opus.

O futuro que Rumfoord prevê para Constant passa por ele ir para outro planeta habitado, fazer parte de seu exército, sofrer lavagem cerebral, ter um filho com alguém que mal conhece, ficar perdido em Mercúrio por anos, voltar à Terra e terminar seus dias exilado em uma das luas de Saturno, Titã. E tudo isso será inevitável.

Dentre tantos temas, um dos centrais no romance é a questão do livre-arbítrio versus a determinação do destino do indivíduo. Nesse segundo caso, o homem seria conduzido seja por instituições sociais, seja pelo momento histórico ou pelo simples acaso. Acrescentando mais um fator, o escritor ainda trata de um assunto recorrente na ficção científica: a influência sobre nossos destinos de vontades que sequer somos capazes de identificar.

Até aí, tudo bem – o romance possui ótimos momentos: toda sua sequência inicial e a inventividade do trecho que se passa em Mercúrio são instigantes. Sem contar que, por trás do estilo simples e direto, o escritor nos surpreende com pequenas pérolas de reflexões antropológicas e filosóficas.

Mas Vonnegut peca por ser muito explícito, às vezes quase didático. Isso acontece em várias ocasiões: na caracterização muito direta de alguns personagens, na insistência em explicar o que os leva a tomar suas decisões e até mesmo nas conclusões que tiram de suas próprias trajetórias. Aliado a isso, existe um personagem central que, em vez de ser superexplicado, na verdade é pouco desenvolvido: trata-se do próprio Rumfoord, delineado mais do ponto de vista de sua classe social do que como indivíduo.

Por fim, a longa descrição de como funciona o exército extraterrestre, do qual Constant toma parte, soa datada no que diz respeito às formas de dominação empregadas pelos comandantes e superiores. O tema já foi abordado tantas vezes, que fica inevitável imaginar que o escritor poderia ter encontrado alternativa mais engenhosa para essa discussão relacionada ao militarismo.

Não acho que As Sereias de Titã esteja entre o melhor de Vonnegut, mas vale a pena para quem quer conhecer uma parte ainda assim importante da obra do escritor.

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